Lobão em "Guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo rock"

Mia analisando o conceito estético-metafísico-hipsilofodôntico da capa

A década de 80, ainda tão viva na memória de quem a testemunhou, e tão longínqua no imaginário dos mais jovens, desperta cada vez mais fascínio, seja por seus estereótipos exagerados, seus clássicos do cinema e da cultura pop em geral ou por acontecimentos históricos importantes: foram tempos de profundas mudanças no mundo inteiro, incluindo o Brasil. E, como é de praxe, as lembranças da época surgem com sua peculiar e rica trilha sonora. Em terras tupiniquins, o gênero musical dominante foi o rock, é fato (inacreditável, por sinal, tendo como ponto de vista os tempos atuais). Assim, é possível contar essa história partindo justamente do ângulo musical. Esta foi a proposta da editora LeYa com Guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo rock, lançado em 2017.

A coleção Guia Politicamente Incorreto teve início com o jornalista curitibano Leandro Narloch, autor de Guia politicamente incorreto da história do Brasil (2009), Guia politicamente incorreto da América Latina (2011), Guia politicamente incorreto da Economia Brasileira (2015), dentre outros. A série contou, também, com outros autores, como o professor Luiz Felipe Pondé (Guia politicamente incorreto da Filosofia, 2012) e  o jornalista Rodrigo da Silva (Guia politicamente incorreto da Política Brasileira, 2018). O encarregado de compor a obra em questão é testemunha, ator e (eternamente) crítico do período abordado: o compositor e multi-instrumentista Lobão, já veterano no ramo literário e (segundo palavras do próprio, no livro) mais bem-sucedido comercialmente neste ramo que naquele.

A primeira característica típica da coleção é o conceito da capa: bastante colorida, com tipografia característica e caricaturas das personagens marcantes da obra. Aqui, são assinadas por Lambuja e fazem referências a capas de discos e imagens históricas dos artistas retratados, como Rita Lee, Ritchie, Marina Lima, Roger Moreira, Renato Russo, Cazuza, Léo Jaime e o próprio autor, em destaque, ao centro, tocando bateria e cantando, com o visual oitentista. As imagens, separadamente, ilustram o início de cada capítulo, em preto e branco. Com 496 páginas distribuídas em prólogo, 15 capítulos, posfácio (pelo escritor e jornalista Martim Vasques da Cunha), agradecimentos e um vasto índice remissivo. O autor optou por abordar um ano por capítulo, iniciando em 1976, quando julga terem início os desdobramentos para todo o ocorrido na década seguinte: a transformação de um mercado musical preso à estética e temática tropicalista para um completamente novo, ainda que constantemente pressionado e sufocado pelos vaidosos defensores do movimento iniciado em 1967.

Lobão escolheu, ainda, o formato de relato pessoal, ao invés de adotar uma literatura essencialmente descritiva, dando à obra a cara de uma segunda autobiografia (a primeira foi 50 anos a mil, lançada em 2010 pela editora Nova Fronteira), desta vez focando-se mais no universo ao redor que nas experiências pessoais mas, em momento algum, apesar da leitura consideravelmente agradável e fluida, esquece-se quem fala. Os lobonismos, expressões (não raro neologismos) usadas para definir elementos típicos de algo ou de alguém, saltam das páginas a todo momento, o que, ao meu ver, é algo muito positivo: quem já assistiu a alguma entrevista ou vídeo do Lobão é capaz de ler todo o livro com a sua voz mentalmente, e este foi o meu caso. O livro traz escancaradamente a personalidade do autor como raramente se vê. Assim, não espere um texto isento: este tem posições e opiniões bem delimitadas, o que pode render, sobretudo em lamentáveis tempos de totalitarismo ideológico, críticas pesadíssimas, como se este fosse um texto sem qualquer valor. Não! Ele apenas não busca likes ou seguir a onda, e sim passar sua mensagem, bem avessa à linha de pensamento mainstream atual.

Ao início de cada capítulo há alguns parágrafos de contextualização: a situação política mundial, as grandes personalidades falecidas, notícias de destaque, relembrando a atmosfera daquele momento. Impossível não se lembrar da sensação de como era viver nos anos 80. Este que vos escreve (parafraseando Lobão em vários trechos do livro) nasceu em 1983, mas o clima da Guerra Fria, da inflação, da insegurança, de um Brasil um tanto anárquico era tamanho, que mesmo para uma criança era perceptível. Assim, apesar de o título do livro não delimitar, o foco é o Brasil: o exterior é apenas citado vez ou outra, como elemento necessário para se explicar algo importante dentro do território nacional, logo, poderia muito bem a obra se chamar Guia politicamente incorreto do Brasil nos anos 80 pelo rock ou Guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo BRock (termo popularizado massivamente após a obra BRock: o rock brasileiro dos anos 80, do jornalista Arthur Dapieve, publicado em 1995 pela editora 34).

Uma constante é a intrigante questão do que lobão trata como coronelismo na indústria musical brasileira, onde a cúpula tropicalista (basicamente Caetano e Gil) e Chico Buarque (e seus vastos e respectivos exércitos de idólatras) tornam-se sinônimo de música inteligente e, sob esse rótulo, passam a ocupar um espaço de elite cultural brasileira, dando as cartas, numa espécie de beija-mão contemporâneo, verificável até hoje: para um novo artista alçar ao patamar de consagrado, deve demonstrar publicamente sua reverência a essa elite e ser chancelado por ela, o que faz bastante sentido ao se pensar em nomes como Maria Gadú, Cidade Negra ou mesmo os Paralamas do Sucesso. Essa realidade é situada também no campo político e ideológico, onde uma também elite ligada a partidos de esquerda ocupa e aparelha as universidades, a imprensa e demais espaços de formação de opinião, resultando numa caça às bruxas a qualquer forma de pensamento dissonante. Bem, quando não se é parte disso, perceber tal fenômeno é tarefa simples ao extremo, mas apenas quando não se é parte disso. Não à toa, o pesadíssimo termo fascismo foi rebaixado, na segunda década do novo milênio, a tudo aquilo que não me diz amém.

Outras narrativas de implicâncias, desta vez de forma até mesmo divertida, é com nomes ligados à produção musical: Nelson Motta, Liminha e Lincoln Olivetti aparecem como figuras quase onipresentes, decididas a estragar os planos (à la vilões da Hanna-Barbera, como Dick Vigarista) de qualquer artista com alguma personalidade musical, por meio das suas padronizações que, realmente, impediram o rock brasileiro de se comparar sonoramente com o norte americano ou europeu. A ausência de solos consistentes, do peso característico esperado, o excesso de baterias eletrônicas e teclados datadíssimos tornam dolorosamente inviáveis certas audições. Lobão não só queixa-se disso desde os anos 80, como critica impiedosamente a própria obra nesse sentido, o que o inspirou a gravar o álbum Antologia politicamente incorreta dos anos 80 pelo rock (2018), com regravações de grandes hits da década com a sonoridade que, segundo o artista, mereceram desde sempre. Outro antagonista constante é Herbert Vianna, mostrado, ao mesmo tempo, como um incorrigível plagiador e um compositor/músico de alto nível.

Em resumo, pode-se afirmar que o livro trata sobre a luta travada pelo BRock para ser admitido como legítima música brasileira. A submissão aos coronéis e outros figurões da indústria, a discriminação sofrida por qualquer gênero musical que não adote certas posturas-chave (como adicionar elementos de samba à sua sonoridade) para ser reconhecido como música para ser levada a sério o que, como artista e pesquisador, concordo plenamente. Como disse no prefácio de A Conquista do Rock (Raquel Dantas, 2017), obra voltada ao rock local em Vitória da Conquista-BA (minha cidade), "já passou da hora de assumir a música jovem, moderna e recheada de influências externas como parte importante da cultural local. Não é preciso escolher entre o rock e o reisado para decidir o que é cultura local legítima". Bem, aqui constatamos um dilema consideravel e inutilmente antigo.

Repetindo, o formato de narrativa escolhido é o relato, e este, ao contrário do texto científico, não necessariamente deve trazer o rigor factual, sendo, o foco, a experiência pessoal. Apesar de, obviamente, o autor ter se debruçado numa extensa pesquisa, nota-se alguns deslizes ou, até mesmo, desatenções. Uma das maiores vítimas desse problema é a banda Titãs: há trechos onde Lobão os cita de forma desinteressada ("[...] eles são agora uns três, se não me engano [...], p. 259) ou até mesmo equivocada quando, insistentemente, os chama de Titãs do Iê Iê Iê, quando bastaria uma atenção mínima para perceber se chamarem Titãs do Iê-Iê. Deslizes semelhantes aparecem ao se referir à canção Múmias (Biquíni Cavadão e Renato Russo) como Múmia (p. 327) e ao situar o nome dos Engenheiros do Hawaii como mera característica new wave, quando, na verdade, o nome veio de uma gozação entre os alunos dos cursos de Arquitetura (da qual faziam parte Humberto Gessinger e Carlos Maltz) e Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Isso e alguns erros de digitação são pequenos negativos perfeitamente corrigíveis numa próxima edição.

Temos aqui, também, diversas reproduções de letras citadas no texto. Lobão, ao tratar de álbuns ao longo da obra, sempre escolhe uma faixa para tal tarefa, às vezes comentada, às vezes apenas citada. Esse fenômeno é seguido de representações fake das famosas bolachas dos discos de vinil, contendo informações sobre faixas, autorias, ano de lançamento, etc. o que, ao mesmo tempo, remete visualmente o leitor à época, mas enche linguiça desnecessariamente. Com o chegar do final da década, sobretudo no capítulo sobre 1989, percebe-se uma certa pressa em terminar: as análises dos discos são mais frias e superficiais, e o leitor é bombardeado de transcrições de letras, dando a impressão de que o prazo para entrega do texto estava próximo ou mesmo a paciência já se esgotara. Um pouco antes, no capítulo sobre 1987 (p. 328-329), Lobão filosofa inesperado e repentinamente sobre o tempo, numa rápida e interessante viajada

O livro termina com o início da década seguinte (e o autor até sugere pensar numa continuação para a obra), onde o rock perdeu espaço no mainstream para a MPB, ou seja: perdeu a luta. Esta não é uma obra densa, indicada para se conhecer com maior riqueza o tema mas, como primeira leitura ou complemento a outras, funciona perfeitamente, sobretudo por se tratar de um relato de uma importante peça nesse tabuleiro. Lobão mostra sua grande habilidade como escritor, num texto medianamente longo, mas envolvente. Em nenhum momento me veio a clássica dúvida entre prosseguir ou abandonar a leitura. Os problemas abordados em relação ao funcionamento da indústria cultural brasileira são reais, nos levando a refletir sobre onde se deve buscar a tão almejada música brasileira de qualidade. Lendo esta e outras obras, como a excelente Da vitrola ao iPod: uma história da indústria fonográfica no Brasil (Eduardo Vicente, lançada em 2014 pela editora Alameda) não há como não se desiludir das grandes gravadoras e pensar no cenário independente, onde o próprio Lobão assumiu um consistente protagonismo a partir dos anos 90. Infelizmente, a indústria parece ter desistido do aspecto criativo e ousado da arte, focando-se apenas em vender produtos de simplória assimilação. É preciso haver mais manifestações chacoalhadoras como esta, para que se lembre: não somos, nem devemos ser, nem de longe, tão medíocres quanto a onda nos tenta convencer.


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