Ética, antropocentrismo, autoconsciência, direito e retórica ou: por que a humanidade jamais verá um mundo sem escravidão*

Numa palavra, a Ética fundamenta e suplementa, a um só tempo, as leis. Nem tudo que integra o ordenamento é ético (p. ex., a escravidão) e nem tudo que está fora dele é irrelevante, como parâmetro de conduta a ser seguido pela sociedade. (BENJAMIN, 2011, p. 82)

 

Desde o fenômeno do sedentarismo, coincidindo com as primeiras formações em direção ao que hoje se compreende como estado de direito, a humanidade claramente buscou desvencilhar-se de um estado de natureza, apontado por Hobbes, onde as regras sociais eram consideravelmente mais simples e ressoantes com as demais espécies vivas. A partir daí, percebe-se uma verdadeira tentativa humana de negação à natureza, enxergando-se como ente à parte, não mais fazendo parte daquela, mas concorrendo e, como facilmente percebe-se atualmente, dominando-a. Avançando mais à epopeia humana, desenvolveram-se as teorias necessárias à afirmação desta realidade: o homem civilizado deveria ser aquele capaz de resistir aos instintos selvagens e agir de acordo com a razão, a moral, ao ordenamento jurídico, aos dogmas religiosos, costumes e tradições que servem, em essência, para se delimitar identidades e reafirmar a postura do ser humano como ente superior, dominante, aquele criado à imagem e semelhança de Deus, portanto, a mais nobre das criaturas.

Assim se fez o Direito: criado pelo homem (atualmente, tempos onde se decidiu deixar de compreender as entrelinhas, faz-se necessário explicar que, aqui, homem é uma forma encurtada para
se referir à espécie humana como um todo), pelo homem e para o homem, tendo, como base, a máxima antropocentrista. Nesse contexto, está a Ética, para guiar a humanidade rumo ao sistema opositor à natureza que criou e torna cada vez mais complexo, afinal, na natureza não há ética: há sobrevivência, custe o que custar. O antropocentrismo alimenta-se de um fator essencial: a arrogância. Esta, apesar de soar desagradável, é a base de sustentação de toda a sociedade humana. Ela é a responsável por transformar tudo o que for considerado inferior, indigno ou, simplesmente, diferente, em coisa, recurso, bens. Ao considerado outro não são reservados temas como empatia ou solidariedade, ao menos em regra. Assim, falamos, pois, necessariamente, em relações de poder. Para ajudar na justificação dessa realidade, criou-se, ainda, a retórica, formas argumentativas de se justificar logicamente algo. Na Europa cristã do século XVI, o outro era o nativo americano. O Debate de Valladolid discutiu a existência ou não de alma nesses exóticos seres. Uma vez decidindo-se pela existência, não seria possível considera-los escravos (uma prática tão antiga quanto a própria humanidade, intimamente ligada ao conceito de outro), tornando-os, então, detentores de direitos e deveres, incorporando-os ao ordenamento jurídico como pessoas. Caso negativo, seriam considerados coisas, sendo tratados como propriedades e escravizados. Apesar de a realidade se mostrar consideravelmente mais complexa, com diversas exceções a todas as regras, este último argumento recaiu sobre os africanos, implicando num dos períodos mais vergonhosos e sangrentos da história.

Mais recentemente, no III Reich, o médico Josef Mengele era conhecido como o anjo da morte de Auschwitz, submetendo centenas de seres humanos a experiências inimagináveis, utilizando-os como cobaias em episódios que demonstram como os conceitos de outro, arrogância, retórica e civilidade podem ser distorcidos ao bel prazer de quem detiver o poder. Os judeus, negros, homossexuais, idosos, deficientes físicos, mentais e quaisquer outros, desde que desenquadrados do conceito do nós (neste caso, o ariano, representante máximo da divindade humana, como o legítimo ser criado à imagem e semelhança do divino). Aqui, o ordenamento jurídico, a moral, a filosofia e até mesmo a ética justificaram e serviram a esses ideais que, por muito pouco, não se tornaram hegemônicos na maior parte do mundo.

Agora é chegada a temida hora de deixar de falar do outro como símbolo das injustiças para se fazer uma autoanálise: neste exato momento, em diversos pontos de nossa cidade, há Mengeles praticando atrocidades contra outros, também com o consentimento da sociedade que, em sua maioria, consideraria absurdo ler estas linhas, tal qual a sociedade americana colonial, quando começou-se a discutir a libertação dos escravos, enxergando-os como detentores de direitos. Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, brilhantemente traduziu a epopeia humana numa frase: uma mentira dita mil vezes torna-se verdade. Acrescentamos: uma mentira dita infinitas vezes torna-se a absoluta e indiscutível verdade do universo. E assim, chegamos ao século XXI, onde a aprovação de uma lei que aumenta a pena para maus-tratos a animais domésticos foi duramente criticada por pomposos juristas e a própria sociedade. O outro é indigno. O eu (ou nós) é sagrado. A natureza (leia-se, todos os seres não-humanos), como outro, é meramente um recurso.

 

Ora, é preciso acabar com essa concepção de que a vida na natureza é algo axiologicamente vazio, algo neutro, bruto, que pode ser manipulado e, depois, pago em dinheiro, por nós, “os dignos”. A vida é um valor. A vida é um valor em si, um valor ontológico. A permanente afirmação da dignidade da pessoa humana, sem valorização da vida em geral, é uma grande arrogância. (AZEVEDO, 2008, p.117)

 

A bioética mostra, por um lado, que sim, o homem não é apenas formado por matéria e covardia, mas empatia. Por outro, pode evidenciar, também, a hipocrisia, quando aplicada apenas aos semelhantes, com extremo rigor, mas desconsiderando os outros. Há ações no sentido de minimizar o sofrimento animal em matadouros, granjas, fazendas, lojas de animais, mas ainda os considera coisas. Inclusive, só agora o direito civil brasileiro passou a fraquejar nesse sentido. Os laboratórios mengelianos de horrores continuam existindo, seja para oferecer iguarias bárbaras como o foie grass, ovos simétricos, padronizados e fabricados em velocidade recorde ou, na mais impressionante amostra do quão longe pode ir a consciência coletiva baseada na arrogância: a indústria de cosméticos, que escancara a verdadeira natureza humana quando pende ao lado sombrio: a vaidade de um vale muito mais que a vida de outro. A vida como bem maior não se aplica quando se trata do outro. E aqui, já vale ressaltar, pode-se considerar como outro (para não se passar impressões equivocadas) não apenas o não-humano, mas qualquer ser colocado no papel de mais fraco, indigno ou indefeso.

 

“Somente a ética poderia resgatar a natureza, refém da arrogância humana. Ela é a ferramenta para substituir o deformado antropocentrismo num saudável biocentrismo” (NALINI, apud BENJAMIN, 2001, p. 83)

 

Aos estudiosos críticos da ética e da natureza humana, cabe, tal qual os criticados e até mesmo agredidos abolicionistas de séculos atrás buscar formas de, ao menos, reduzir a velocidade desta triste realidade: toda a sociedade humana se construiu baseada na escravidão e violação dos direitos fundamentais dos considerados outros. Não há iPhone sem violência, não há sequer o conforto de uma cama ao fim do dia sem uma morte como matéria prima. A humanidade, ao virar as costas à natureza, não apenas tornou-se sua concorrente ou mera dominadora: tornou-se sua carrasca a ponto de, ainda diante da consciência deste lado sombrio pulsando em cada homo sapiens sapiens, não haver vislumbro de um cenário diferente. O detentor do poder subjuga o outro, que pode assumir tanto a forma de uma outra espécie como de outro nível de status social: vale lembrar que, numa simples busca na internet, encontra-se, facilmente, tanto casos de moradores de rua quanto de animais queimados vivos, por mera diversão dos autores. Reiterando Hobbes, o homem é o lobo do homem. E acrescentamos: o homem é o demônio de todos os outros seres.

 

Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são motivos igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é “Eles são capazes de raciocinar?”, nem “São capazes de falar?”, mas, sim: “Eles são capazes de sofrer?” (BENTHAM, 1823, apud SINGER, 2010, p. 12)

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

APÓS denúncia de maus-tratos, grupo invade laboratório e leva cães beagle. G1, São Paulo, 18 outubro 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/noticia/2013/10/ativistas-invadem-e-levam-caes-de-laboratorio-suspeito-de-maus-tratos.html. Acesso em: 04 dez. 2020.

 

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil. Em favor de uma ética biocêntrica. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, jan/dez 2008. Disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2020/06/critica-ao-personalismo-etico-antonio-junqueira-de-azevedo.pdf. Acesso em: 04 dez. 2020.

 

BENJAMIN, Antônio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC. 2001/1. Disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2020/06/a-natureza-no-direito-brasileiro-herman-benjamin.pdf. Acesso em: 04 dez. 2020.

 

DIRETORA do Instituto Royal explica o caso dos beagles nesta tarde na Câmara. Câmara dos Deputados, Brasília, 29 outubro 2013. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/419085-DIRETORA-DO-INSTITUTO-ROYAL-EXPLICA-O-CASO-DOS-BEAGLES-NESTA-TARDE-NA-CAMARA. Acesso em: 04 dez. 2020.

 

ESTÁ nas mãos do STF acabar com a crueldade do foie grass. Animal Equality Brasil. YouTube. Disponível em: https://youtu.be/0VUVdGzCV40. Acesso em: 05 dez. 2020.

 

NOVA mutação do vírus da Covid-19 leva Dinamarca a sacrificar milhões de visons. Portal PEBMED. Disponível em: https://pebmed.com.br/nova-mutacao-do-virus-da-covid-19-leva-dinamarca-a-sacrificar-milhoes-de-visons/. Acesso em: 05 dez. 2020.

 

SANTOS, Rafa. Vida de cão. Bolsonaro sanciona lei de proteção a animais e promete corrigir distorção punitiva. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-29/bolsonaro-sanciona-lei-protecao-animais-cria-distorcao. Acesso em: 04 dez. 2020.

 

SINGER, Peter. Todos os animais são iguais... Ou por que o princípio ético no qual se baseia a igualdade humana exige que se estenda a mesma consideração também aos animais. In: Libertação Animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.


* Texto produzido originalmente para a disciplina Ética, do Curso de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.

 

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