Quer ouvir música decente? Se tranque em casa ou use um fone
Há algum tempo ando muito chateado com a minha cidade. Como muitas, temos carros equipados com aparelhagem de som caríssimos, que os fazem parecer trios elétricos. Temos vários botecos(muitos) espalhados em todos os bairros, cada um com seu som ambiente. Temos lojas de eletrodomésticos, daquelas que vendem desde um fogão até uma moto e jogam comerciais barulhentos na TV, uns engolindo os outros. Temos emissoras de rádio. Não muitas, mas temos. Temos algumas emissoras de TV que pegam de razoavelmente a bem, sem auxílio de parabolica ou assinatura. Temos nossos queridos estudantes que se recusam a usar fone de ouvido quando estão em ônibus. Temos os próprios ônibus e suas caixas de som ambiente. Temos academias de ginástica, temos taxis e temos uma estação rodoviária, só pra não ficar muito detalhista.
Há muito tempo deixei de ser um "roqueiro radical". Já não uso meu militancia.antipagode@bol.com.br há pelo menos uns dez anos. A gente vai envelhecendo e ficando mais tranquilo, menos intolerante. Mas conversando e prestando atenção cheguei à conclusão de que é praticamente impossível se ouvir o que eu considero boa música em algum lugar que não seja minha própria casa, fone ou algum lugar onde eu não detenha o controle do volume. Digo considero boa música já pra não ter ninguém me dizendo o óbvio, que música boa é algo muito relativo. Isso eu já sei há muito tempo, e foi por saber disso que fiquei menos radical que dez anos atrás.
Não sei em que lugar do mundo você, leitor(a), está no momento. Mas aqui em Vitória da Conquista-BA-BraZil a regra, o padrão musical aponta para um eixo bastante conhecido e desagradável aos meus ouvidos: axé-sertanejo(universitário, de preferência, seja lá o que isso quer dizer)-pagode soteropolitano(é diferente de axé, acredite ou não)-arrocha(este incorpora grupos dos gêneros anteriores)-forró(principalmente os que fariam Luiz Gonzaga se contorcer no túmulo). É isso. Ou você ouve e gosta disso ou é um alien.
Eu gosto de coisas bem distantes desse eixo: rock n' roll, blues, jazz, algo do que rotulam como MPB e Luiz Gonzaga, basicamente. Aqui rock é música de maluco barulhento. Blues é "aquelas músicas de strip-tease". Jazz é uma modalidade de dança que ensinam nas academias(!!!). MPB é música cabeça demais e Luiz Gonzaga é algo antigo demais para os jovens e cult o suficiente para fazer alguns universitários se sentirem cults ao falarem do que gostam de escutar para os amiguinhos cult.
Chego numa loja de eletrodomésticos e me deparo com um paredão de micro systems a todo volume tocando o (argh!) Parangolé. Nem entro e passo em frente a outra: Cláudia Leitte. Vou a outra: Luan Santana. Paro pra tomar alguma coisa num bar qualquer. O novo sucesso do "minha mulher não deixa não, blá blá blá" está no rádio, executada não mais por quem a criou. Isso se procria com extrema facilidade, assim como seu público. Saio de lá e penso em tomar um táxi pra casa. Desisto ao ver Zezé di Camargo na telinha do DVD em cima do painel do carro. Vou pegar um ônibus. Está passando a mesma rádio do bar. Uma passageira parece não gostar, então pega seu celular e coloca uma linda música evangélica a todo volume para doutrinar todos os outros, incluindo a mim. Chego em casa, aliviado. É quando meu vizinho resolve abrir o porta-malas do carro e ouvir, a infinitos decibéis, hits parecidos com o maldito Rebolation. Um detalhe: ouço várias vozes, parece uma bebedeira. O infeliz não deixa passar mais que 30 segundos de nenhuma música, então ouço pedaços de umas 50 músicas supostamente diferentes e instruções de como rebolar do jeito certo. Fecho a janela.
Certa vez fui numa gráfica rápida imprimir uns projetos da DB. Entrei na sala dos designers e havia uma cadeira vazia, cujo PC tocava, baixinho, Piazzolla. Fiquei impressionado. Nem eu tenho algo dele em casa. Interessantes foram os comentários dos outros funcionários: "Pô mas esse som de fulano tá fraco demais!"; "Quem tá ouvindo esse troço aí?"; "Desliga a caixa desse PC aí, num dá pra aguentar isso no ouvido não". Coisas desse tipo. Se o volume máximo da caixa era 10, a música deveria estar no 0,9.
Dentro do shopping tomo um mate em frente a uma loja de eletrodomésticos. DVD do Calypso, a todo volume. Conversando com minha namorada sobre isso imaginamos como seria se um de nós trabalhasse ali. Trazer um DVD de algo melhorzinho e ainda muito light? Nem pensar. Um amigo que trabalhou num hipermercado já disse que música decente não fica nem dez minutos no player. Os próprios colegas de trabalho tiram e substituem por Ivete ou algum dos exemplos acima citados. Sem falar que espantaria a clientela. Se bem que não é uma boa ideia comprar aparelho de som onde se vende cama, bicicleta e geladeira.
Já me disseram que, numa academia de ginástica, pediram pra tirar "esses rocks barulhentos" ao ouvirem a pesadíssima versão de Por Enquanto do Legião Urbana na voz de Cássia Eller. Punk rock hardcore de verdade. Quando fiz faculdade perdi rapidamente a ilusão de que os universitários são seres politizados e exigentes com a arte que consomem (infelizmente não estava vivo na década de 70). Pois lá eu ainda era considerado o roqueiro maluco por boa parte. Saudável mesmo é ouvir Calcinha Preta.
Existe aqui um festival anual, cujo palco principal é focado no pop-rock. Convenhamos, odeio Charlie Brown Jr, ignoro o Jota Quest, apesar de não considerá-lo ruim, Não suporto O Rappa, mas tudo bem: já é mais próximo do que eu escuto e sempre consegui cortesia pra entrar. Toquei no "palco dos roqueiros barulhentos" duas vezes com a The New Old Jam e trabalhei de outras formas ,outras vezes. E conheço algumas pessoas. Não seria nenhum sacrifício. Além do palco principal e o palco dos barulhentos existem também o palco do forró e outras coisas que expressam o padrão musical da cidade. Aqui fala-se português e ouve-se o que já falei. São oficiais, não dá pra mudar. Ano passado e retrasado já tivemos artistas do axé-music no palco principal, ou seja: parece que mesmo ganhando as entradas não vou mais querer ir. Só havia este evento, uma vez por ano, que eu me dispunha a ir. Daqui pra frente nem isso. É como estar numa gaiola que só diminui.
É doloroso se sentir um alien em sua própria casa. Passei 28 anos nesta cidade e simplesmente me identifico cada vez menos com ela (esqueci de mencionar o quanto minha própria família gosta de ouvir certas coisas já citadas). Me dizem "mas é só música. Por que não relaxa e dança também?". Pra alguém que tem a música como algo tão importante isso é simplesmente ridículo. Um insulto até. É como um piloto de Formula 1 viver num lugar onde só se anda de carroça ou um policial honesto viver num lugar onde só existem bandidos. Totalmente fora de contexto.
Então vem a frase óbvia: "cai fora então, ué!". A ideia é essa, claro. Vai acontecer, mas deve haver mais alguém que neste momento está se sentindo numa gaiola, assim como eu, e infelizmente não poderá pular do barco. Este texto é apenas um desabafo, uma forma de dar voz aos que também se incomodam com o poder da maioria. Além de não conseguir me livrar de todo esse lixo sonoro que está em todas as formas de mídia e também fora dela, não temos espaço pra sequer sair dessa direção por alguns segundos. Aí a solução é apenas se isolar em casa ou num bom fone de ouvido. Ou abrir mão da sua individualidade para se integrar ao todo. Como é na sua cidade?
Obs.: este texto apenas expressa a minha opinião e o meu ponto de vista. Não forço ninguém a concordar comigo e muito menos a ler o que escrevo. Dizem que este é um país livre, então estou no meu direito. Pense nisso antes de me insultar.
Há muito tempo deixei de ser um "roqueiro radical". Já não uso meu militancia.antipagode@bol.com.br há pelo menos uns dez anos. A gente vai envelhecendo e ficando mais tranquilo, menos intolerante. Mas conversando e prestando atenção cheguei à conclusão de que é praticamente impossível se ouvir o que eu considero boa música em algum lugar que não seja minha própria casa, fone ou algum lugar onde eu não detenha o controle do volume. Digo considero boa música já pra não ter ninguém me dizendo o óbvio, que música boa é algo muito relativo. Isso eu já sei há muito tempo, e foi por saber disso que fiquei menos radical que dez anos atrás.
Não sei em que lugar do mundo você, leitor(a), está no momento. Mas aqui em Vitória da Conquista-BA-BraZil a regra, o padrão musical aponta para um eixo bastante conhecido e desagradável aos meus ouvidos: axé-sertanejo(universitário, de preferência, seja lá o que isso quer dizer)-pagode soteropolitano(é diferente de axé, acredite ou não)-arrocha(este incorpora grupos dos gêneros anteriores)-forró(principalmente os que fariam Luiz Gonzaga se contorcer no túmulo). É isso. Ou você ouve e gosta disso ou é um alien.
Eu gosto de coisas bem distantes desse eixo: rock n' roll, blues, jazz, algo do que rotulam como MPB e Luiz Gonzaga, basicamente. Aqui rock é música de maluco barulhento. Blues é "aquelas músicas de strip-tease". Jazz é uma modalidade de dança que ensinam nas academias(!!!). MPB é música cabeça demais e Luiz Gonzaga é algo antigo demais para os jovens e cult o suficiente para fazer alguns universitários se sentirem cults ao falarem do que gostam de escutar para os amiguinhos cult.
Chego numa loja de eletrodomésticos e me deparo com um paredão de micro systems a todo volume tocando o (argh!) Parangolé. Nem entro e passo em frente a outra: Cláudia Leitte. Vou a outra: Luan Santana. Paro pra tomar alguma coisa num bar qualquer. O novo sucesso do "minha mulher não deixa não, blá blá blá" está no rádio, executada não mais por quem a criou. Isso se procria com extrema facilidade, assim como seu público. Saio de lá e penso em tomar um táxi pra casa. Desisto ao ver Zezé di Camargo na telinha do DVD em cima do painel do carro. Vou pegar um ônibus. Está passando a mesma rádio do bar. Uma passageira parece não gostar, então pega seu celular e coloca uma linda música evangélica a todo volume para doutrinar todos os outros, incluindo a mim. Chego em casa, aliviado. É quando meu vizinho resolve abrir o porta-malas do carro e ouvir, a infinitos decibéis, hits parecidos com o maldito Rebolation. Um detalhe: ouço várias vozes, parece uma bebedeira. O infeliz não deixa passar mais que 30 segundos de nenhuma música, então ouço pedaços de umas 50 músicas supostamente diferentes e instruções de como rebolar do jeito certo. Fecho a janela.
Certa vez fui numa gráfica rápida imprimir uns projetos da DB. Entrei na sala dos designers e havia uma cadeira vazia, cujo PC tocava, baixinho, Piazzolla. Fiquei impressionado. Nem eu tenho algo dele em casa. Interessantes foram os comentários dos outros funcionários: "Pô mas esse som de fulano tá fraco demais!"; "Quem tá ouvindo esse troço aí?"; "Desliga a caixa desse PC aí, num dá pra aguentar isso no ouvido não". Coisas desse tipo. Se o volume máximo da caixa era 10, a música deveria estar no 0,9.
Dentro do shopping tomo um mate em frente a uma loja de eletrodomésticos. DVD do Calypso, a todo volume. Conversando com minha namorada sobre isso imaginamos como seria se um de nós trabalhasse ali. Trazer um DVD de algo melhorzinho e ainda muito light? Nem pensar. Um amigo que trabalhou num hipermercado já disse que música decente não fica nem dez minutos no player. Os próprios colegas de trabalho tiram e substituem por Ivete ou algum dos exemplos acima citados. Sem falar que espantaria a clientela. Se bem que não é uma boa ideia comprar aparelho de som onde se vende cama, bicicleta e geladeira.
Já me disseram que, numa academia de ginástica, pediram pra tirar "esses rocks barulhentos" ao ouvirem a pesadíssima versão de Por Enquanto do Legião Urbana na voz de Cássia Eller. Punk rock hardcore de verdade. Quando fiz faculdade perdi rapidamente a ilusão de que os universitários são seres politizados e exigentes com a arte que consomem (infelizmente não estava vivo na década de 70). Pois lá eu ainda era considerado o roqueiro maluco por boa parte. Saudável mesmo é ouvir Calcinha Preta.
Existe aqui um festival anual, cujo palco principal é focado no pop-rock. Convenhamos, odeio Charlie Brown Jr, ignoro o Jota Quest, apesar de não considerá-lo ruim, Não suporto O Rappa, mas tudo bem: já é mais próximo do que eu escuto e sempre consegui cortesia pra entrar. Toquei no "palco dos roqueiros barulhentos" duas vezes com a The New Old Jam e trabalhei de outras formas ,outras vezes. E conheço algumas pessoas. Não seria nenhum sacrifício. Além do palco principal e o palco dos barulhentos existem também o palco do forró e outras coisas que expressam o padrão musical da cidade. Aqui fala-se português e ouve-se o que já falei. São oficiais, não dá pra mudar. Ano passado e retrasado já tivemos artistas do axé-music no palco principal, ou seja: parece que mesmo ganhando as entradas não vou mais querer ir. Só havia este evento, uma vez por ano, que eu me dispunha a ir. Daqui pra frente nem isso. É como estar numa gaiola que só diminui.
É doloroso se sentir um alien em sua própria casa. Passei 28 anos nesta cidade e simplesmente me identifico cada vez menos com ela (esqueci de mencionar o quanto minha própria família gosta de ouvir certas coisas já citadas). Me dizem "mas é só música. Por que não relaxa e dança também?". Pra alguém que tem a música como algo tão importante isso é simplesmente ridículo. Um insulto até. É como um piloto de Formula 1 viver num lugar onde só se anda de carroça ou um policial honesto viver num lugar onde só existem bandidos. Totalmente fora de contexto.
Então vem a frase óbvia: "cai fora então, ué!". A ideia é essa, claro. Vai acontecer, mas deve haver mais alguém que neste momento está se sentindo numa gaiola, assim como eu, e infelizmente não poderá pular do barco. Este texto é apenas um desabafo, uma forma de dar voz aos que também se incomodam com o poder da maioria. Além de não conseguir me livrar de todo esse lixo sonoro que está em todas as formas de mídia e também fora dela, não temos espaço pra sequer sair dessa direção por alguns segundos. Aí a solução é apenas se isolar em casa ou num bom fone de ouvido. Ou abrir mão da sua individualidade para se integrar ao todo. Como é na sua cidade?
Obs.: este texto apenas expressa a minha opinião e o meu ponto de vista. Não forço ninguém a concordar comigo e muito menos a ler o que escrevo. Dizem que este é um país livre, então estou no meu direito. Pense nisso antes de me insultar.
1 Comentários
Cara, você falou tudo. O seu texto é extraordinário e exprime exatamente tudo o que sinto quando vou a qualquer ambiente social. Quando estou fora da minha casa, carrego sempre os meus fones de ouvido, para escutar o que me convém. Porque lixo sonoro faz muito mal para a alma.
ResponderExcluirParabéns pelo belo texto.
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