Memórias da Pandemia - Parte 01

A entrada do campus da UESB. Foto tirada para o flyer de um juri simulado, que foi cancelado pela pandemia

2020 é um ano ímpar na história de todos, em todos os sentidos. Acho que ninguém vivo atualmente teve uma experiência como esta, no sentido de saber que o cotidiano se tornou parecido em qualquer parte do mundo, não importando onde se está. Pois bem, a autoconsciência histórica parece ter se aflorado neste dramático momento em que escrevo (24/06/2020) onde, apenas no Brasil, já morreram,  oficialmente, 52.771 pessoas pelo COVID-19. Há algumas semanas postei, nas redes sociais, a seguinte frase: você está preparado para ser exaustivamente entrevistado daqui a 50 anos, como a nossa geração faz com os sobreviventes da II Guerra Mundial? Sim: todos nós temos consciência de que testemunhamos a história que estará em todos os livros do futuro. Haverá livros temáticos em todas as áreas do conhecimento, filmes, romances, assim como os que consumimos exaustivamente sobre os acontecimentos de 100 anos atrás. Já somos aquela longínqua população que testemunhou algo tão surreal que até parece ficção.

Para dar uma forcinha aos historiadores do futuro (incluindo a mim mesmo), decidi escrever aqui minhas memórias de como a pandemia me afetou e aos que me estão próximos, até porque eu mesmo, admito, falhei um pouco em viver criticamente este momento como um historiador. É bom contextualizar o momento também, que não está fácil de digerir, independente da quarentena e suas notícias incessantes. Desde as eleições de 2018 está muito difícil ligar a TV ou mesmo acessar as redes sociais, uma vez que a parcela perdedora decidiu fazer o que sabe de melhor: espernear. Assim, não é preciso muito (na verdade quase nada) para ser chamado de fascista, bandido, estuprador, racista ou algo parecido atualmente. E o pior: são seus amigos e colegas fazendo isso, o que torna ainda mais desleal essa disputa pela verdade universal que não leva a lugar algum. Para piorar, Bolsonaro e sua trupe não colaboram, falando e fazendo idiotices na mesma proporção, deixando aqueles que, como eu, não são fanáticos, no meio da linha de fogo, apenas recebendo bombardeios de todos os lados. Isso me afastou dos noticiários consideravelmente, porque há muito o jornalismo se confundiu com militância e a tal busca pela isenção nem é lembrada mais. Na faculdade então, é AQUELE totalitarismo marxista-partidário que lhe faz calar e se esconder na multidão, porque não dá pra ir à guerra todo santo dia em pleno estado de direito.

Assim, não dei muita importância às notícias sobre a COVID-19 no início, quando ainda era um problema exclusivamente chinês. Na verdade, sempre há notícias sobre alguma bizarrice vinda da China e, como falei, o clima politiqueiro anda insuportável a ponto de muitos simplesmente escolherem não se informar, para evitar o estresse. Além disso, eu estava muito envolvido em meus projetos profissionais: após o fim da Distintivo Blue enquanto banda, decidi voltar aos estudos. Ingressei na faculdade de Direito em 2018 (privada) e me vi na frustrante missão de ser músico de barzinho para pagar os estudos. Foi um ano muito difícil, financeiramente falando, e estressante, principalmente porque a dificuldade de convivência com meus extremamente jovens, imaturos e barulhentos colegas foi gigantesca. Fiz a famosa prova de transferência para a UESB (pública, onde cursei História) e, na segunda tentativa, consegui ser aprovado, o que significou um alívio financeiro fundamental em meu orçamento. Cursei um semestre em estado de êxtase e felicidade incalculáveis. Foi quando tive a ideia de ressuscitar e por em prática um projeto antigo, que se tornou o Memória Musical do Sudoeste da Bahia. A partir daí, tive a ideia de participar da seleção para o Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade da UESB, com um projeto voltado para o rock autoral local, uma bandeira que sempre carreguei e me rendeu uma certa gama de antipatizantes. Para a minha surpresa, fui aprovado e ainda consegui uma bolsa pela FAPESB, o que me transformou de uma pessoa que pagava, com muitíssimo sacrifício, para estudar, para uma que seria paga para estudar, me livrando da tortura que é viver de música em minha cidade. Até agora ainda me pego pensando se estou ou não sonhando.

O desafio, entretanto, não seria fácil: cursar uma graduação e um mestrado ao mesmo tempo exigiria nervos fortes. No primeiro semestre de 2020, meu segundo em Direito na instituição, me matriculei em disciplinas em várias turmas diferentes, por causa da adaptação à nova grade curricular. Tive aulas pela manhã e à noite. O mestrado ainda não havia começado, mas o edital de seleção era bem claro ao enfatizar que o regime era integral, o que significaria desistir de algumas matérias de Direito e atrasar o andamento normal do curso por até dois anos. Na UESB, o limite máximo de trancamento é de 1 ano, ou seja: por pelo menos dois semestres, preciso conseguir cumprir ao menos uma disciplina de Direito para não perder minha tão sofrida vaga. Assim, teve início o mestrado. No dia 9 de março aconteceu a primeira reunião com os ingressantes, quando finalmente tive acesso ao calendário do semestre. Felizmente (ou infelizmente), ele não é como na graduação, com uma rotina tão bem definida de aulas: boa parte dos professores é de outra cidade, então, uma aula pode ser hoje, a outra daqui a algumas semanas, ou toda a matéria pode ser dada numa só semana, em tempo integral. Bom, isso pode viabilizar a conciliação dos dois cursos, ou não... Só o tempo e a ocasião para dizer.

Enfim... Tive minha primeiríssima aula, no dia 10 de março, às 14h: Fundamentos da Pesquisa em Memória. A seguinte ficou marcada para o dia 07 de abril. Na manhã do dia anterior, já notei uma preocupação geral com o COVID-19. Na aula de Direito Processual Civil I, lembro-me de ouvir a professora dizer que não computaria faltas a partir dali, uma vez que seria direito de cada um decidir se seria ou não seguro ir à universidade. Minha última aula registrada (minha memória já não é tão clara sobre esse momento) é de 11 de março, Direito Ambiental, à noite. Começou aí a minha quarentena. No dia 15 haveria um show dos Titãs aqui em minha cidade (Vitória da Conquista-BA) e já foi cancelado. A mensagem recebida em meu e-mail, no dia 13 foi a seguinte:

O Coletivo Suíça Bahiana, seguindo recomendações do Ministério da Saúde referentes à pandemia do novo coronavírus (covid-19), informa o adiamento do show Titãs Trio Acústico que ocorreria neste domingo, 15. O evento seria realizado no Centro de Convenções Divaldo Franco, em Vitória da Conquista. O adiamento é uma medida de precaução, acordada entre a Banda e a produção do evento, conforme a orientação dos órgãos de vigilância epidemiológica. Além disso, a turnê prevista para o estado da Bahia ficou inviabilizada devido ao cancelamento do show na cidade de Itabuna, após decreto emitido pela Prefeitura na tarde desta sexta-feira, 13. O texto do documento suspende a realização de eventos que reúnam mais de 50 pessoas. As informações sobre ingressos já adquiridos e novos ingressos serão prestadas assim que for possível confirmar a nova data, inclusive sobre a política de reembolso caso a pessoa não possa comparecer à nova data.
Começou aí um clima de medo generalizado nunca visto antes. Os noticiários não falavam em outra coisa, e a tão famosa ordem fique em casa começou a dar as caras. Ninguém sabia ao certo da gravidade da situação, mas era melhor obedecer.


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Continua...

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